Debelando erros históricos

Os quarenta e cinco anos que separam o histórico incêndio no Edifício Joelma, em São Paulo, da morte de dez jovens atletas do clube mais popular do Brasil, no último dia 8 de fevereiro, não foram suficientes para banir da imprensa e, principalmente, do imaginário popular, a falsa ideia de que ar-condicionado seja fator de risco para a propagação das chamas.

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Embora as investigações em torno do acidente ainda não tenham terminado, tudo que se falou até aqui sobre o caso aponta para uma conjunção de fatores tornando o início do fogo quase um detalhe, frente aos muitos aspectos em cadeia que transformaram um provável susto em mais um exemplo lastimável de negligência e descaso, segundo especialistas ouvidos pela Revista do Frio.

Ninho do Urubu: sérias pendências numa área onde fazer a coisa certa poupa vidas

Mas, enquanto não surge uma real consciência sobre a segurança do ar-condicionado, uma vez bem instalado e mantido, o que resta ao HVAC é, literalmente, apagar incêndios, como fez o presidente da Associação Brasileira de Refrigeração, Ar Condicionado, Ventilação e Aquecimento (ABRAVA), ao participar do programa Encontro com Fátima Bernardes, da TV Globo, apenas três dias após o acidente no Rio.

“Um aparelho de janela é um eletrodoméstico, como é uma geladeira, TV, liquidificador, seja lá o que for. É fabricado sob condições muito severas, não existe fabricante amador, todo equipamento é produzido sob rígidas normas, com controle de qualidade e inspeção”, afirmou Arnaldo Basile, ao vivo e em rede nacional.

Ao responder a mais uma pergunta, o líder setorial reforçou sua tese indagando ao jornalista se ele conhecia algum caso de geladeira que tivesse pegado fogo ou explodido.

E concluiu sua análise preliminar sobre acontecimentos similares ao do Ninho do Urubu frisando que, “usualmente, o problema acontece é na instalação elétrica que alimenta o ar-condicionado” (leia quadro à página 22) .

Rápida ação da ABRAVA para tirar a possível imagem de vilão do ar-condicionado

No atual momento de consternação vivido por todos, Basile coloca como prioridade para o setor que representa saber se e como foi feito o Plano de Manutenção, Operação e Controle (PMOC), verdadeiro diário de bordo de um sistema de climatização, que assumiu o status de lei há pouco mais de um ano.

Outro profissional preocupado com o tema é o engenheiro Carlos Kayano, membro do DNPC – Departamento Nacional de Projetistas e Consultores da Abrava.

Desde o episódio da Boate Kiss, em 2013, a entidade sedia o grupo responsável pela elaboração de uma norma no âmbito do CB 24, segurança contra incendio, comitê da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), ligados ao controle de fumaça utilizando ventilação.

Kayano, do Departamento Nacional de Projetistas e Consultores: questão dos materiais empregados vai muito além das divisórias

No seu entender, o benefício de o alojamento do Flamengo ser pequeno, o que impediria alguém de se perder ao tentar abandoná-lo, acabou neutralizado pela fatalidade de muitos jovens já estarem dormindo, sendo levados a inalar passivamente as substâncias tóxicas causadoras de suas mortes.

“E mesmo que as paredes e divisórias de um local estejam devidamente protegidas, é praticamente impossível controlar, por exemplo, a toxicidade da espuma empregada nos móveis e colchões, o mesmo acontecendo com os materiais de cortinas e carpetes”, diz Kayano, lembrando ainda o estorvo representado até mesmo por portas que, no Brasil, abrem para dentro, ao contrário do que se vê nos EUA e Japão.

No caso do centro de treinamento, além de aspectos assim, a falta de sinalização de rota de fuga e os prováveis danos causados pela combustão de painéis e revestimentos, fica evidente a consequência trazida pela absoluta falta de preparo dos ocupantes daquele contêiner travestido de dormitório.

“Andar abaixado, para evitar a inalação de fumaça, ou simplesmente abrir as janelas poderia ter poupado aquelas vidas”, exemplifica o engenheiro. “Se houvesse mais divulgação em torno do assunto, mesmo que a maioria dos meninos entrasse em desespero, alguns poderiam saber como agir”, acrescenta Kayano.

Jeitinho brasileiro

Somada ao ranço cultural de ignorar riscos, negligência é ponto comum nas catástrofes com fogo no Brasil, analisa a engenheira e professora Carla Costa

Tão inadmissível quanto o desconhecimento generalizado sobre o que fazer diante de um incêndio é a morte de jovens saudáveis em edificações térreas, onde a fuga teoricamente seria bem mais fácil. Quem opina é a professora doutora Carla Neves Costa, da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp.

Pesquisadora do assunto há cerca de 20 anos, ela está convencida de que o traço comum entre catástrofes como esta e a da Boate Kiss “é uma série incrível de negligências, ancorada pelo ranço cultural de se ignorar riscos, com base na crença de que Deus é brasileiro”, constata.

Na esteira desse comportamento, cometem-se aberrações como burlar treinamentos nos condomínios, ao assinar a lista de presença sem de fato participar, bem como o criminoso “aluguel” de extintores de incêndio para forjar uma aparente situação regular.

O enfoque distorcido da questão chega a tornar malvisto nas empresas, por parte do empregador, o voluntariado à brigada contra incêndio, enquanto muitos arquitetos e engenheiros enxergam a vistoria dos bombeiros como “um problema criado para dificultar a aprovação do projeto na prefeitura”, revela a estudiosa.

Para Ana Paula Kinoshita, da APK Engenharia Consultoria e Serviço, “as pessoas acham que a vida é brincadeira e diante de uma tragédia como a do CT do Flamengo, acabam culpando injustamente os engenheiros, equipamentos de prevenção e até mesmo os aparelhos de ar-condicionado”, analisa.

Para a engenheira e
consultora Ana Paula
Kinoshita, falta de
seriedade ainda
espalha suspeitas
infundadas sobre as
causas dos incêndios

Se tem um setor onde a Lei de Murph existe esse é o da proliferação do fogo, onde qualquer curto-circuito pode interagir rapidamente com materiais inadequados, deficiência nas rotas de fuga e falta de conhecimento por parte dos ocupantes, compondo assim um cenário favorável à perda de vidas.

O que dói, segundo ela, é ver o predomínio do chamado jeitinho brasileiro, inclusive ao se adquirir itens vitais de segurança sem a devida certificação, ou quando um dos maiores clubes esportivos do País, habituado a fazer contratações milionárias, mantém seus futuros craques tão mal instalados.

Lições do passado

A avalanche de práticas condenáveis hoje em dia é mais grave que antigamente, pois já existem normas técnicas sobre o projeto de saídas de emergência, rotas de fuga, controle de materiais de acabamento e de revestimento, “mas o proprietário continua negligenciando a lei, enquanto o poder público faz o mesmo no tocante à fiscalização”, lamenta Carla.

Mesmo assim, a partir dos anos 1980, o legado deixado pelos dois grandes acidentes da década anterior ficou evidente, resultando na diminuição do número de vítimas, a ponto de uma pessoa ter morrido no incêndio que, em 1987, consumiu as duas torres de 20 andares do Edifício CESP, na Avenida Paulista, contra 16 nos 27 pavimentos do Andraus e 188 nos 23 do Joelma.

De acordo com a professora, porém, mudança radical de cenário foi mesmo a vivida pelos países de língua inglesa, onde a segurança contra incêndio assumiu o status de ciência e engenharia com vida própria, após a destruição de cidades inteiras pelo fogo.

Em 1974, edifício Joelma, na capital paulista, somou-se ao incêndio do Andraus como inspiração para o surgimento de normas no setor

Em função daquele que ficaria conhecido como “O Grande Incêndio de Londres”, em 1666, o empresário local Mr. Lloyd criou uma Bolsa de Seguro Patrimonial, para minimizar prejuízos em futuras situações semelhantes.

“Ao mesmo tempo, o rei George decretaria a proibição do uso de madeira e quaisquer materiais inflamáveis nas construções residenciais, sendo permitidas apenas pedras e tijolos de argila”, acrescenta a mestre e doutora.

Até hoje a cultura da segurança contra incêndio está bem desenvolvida entre os britânicos, em cujo país o assunto faz parte do projeto pedagógico de cada ano escolar, desde o ensino fundamental até a faculdade.

Os professores recebem kits pedagógicos para trabalhar o tema por meio de teatralização do “Grande Incêndio”, e jogos educativos sobre os materiais de construção seguros e a reconstituição do desastre. As crianças constroem maquetes de Londres com papelão no pátio da escola, para depois assistirem as chamas consumindo a cidade em minutos.

Além disso, anualmente a data da catástrofe é lembrada pelos meios de comunicação, peças de teatro e filmes, havendo até mesmo poemas sobre o ocorrido já incorporados à Literatura Inglesa.

Quando um aluno ingressa na universidade, ele recebe o manual de instruções do edifício residencial, que é um guia de segurança contra incêndio. É também avisado do calendário semanal de testes envolvendo alarmes e equipamentos, participando ainda de simulações de abandono realizadas uma vez por semestre, sem aviso prévio, e sob instruções dos colegas brigadistas voluntários.

Os Estados Unidos igualmente tiveram um divisor de águas nesse setor, o incêndio que destruiu Chicago em 1871, a partir do qual foi criado o primeiro curso específico sobre Engenharia de Proteção Contra Incêndio, tendo ainda sido instituída uma série de normas para evitar novas tragédias em ambientes confinados ou semiabertos.

No Japão, por sua vez, a manutenção do assunto na ordem do dia é motivada pela constante iminência de terremotos, o que também gera a realização de treinamentos a partir da infância e a tomada de providências na construção civil incluindo portas que abrem sempre para fora nas entradas dos apartamentos, facilitado assim uma possível desocupação de emergência.

Antes tarde

O indiscutível atraso em nosso país envolvendo tudo que se refira à prevenção de incêndios só tem um caminho de reversão: colocar-se em prática uma profunda mudança cultural. A opinião é unânime entre aqueles que atuam nos diversos segmentos relacionados ao tema, hoje reunidos em uma série de grupos e associações.

Lin, da CKC do Brasil: conscientização a partir de engenheiros e arquitetos na hora de especificar materiais, e dos consumidores ao colocar qualidade acima do preço

Não haveria de ser diferente com Jeffery Lin, diretor da empresa paulistana CKC do Brasil e especialista em proteção passiva contra o fogo – área voltada ao emprego de tintas e materiais construtivos capazes de retardar as chamas e, com isso, permitir a rápida evacuação das áreas incendiadas.

Segundo ele, a conscientização deve começar por engenheiros e arquitetos, ao especificar aquilo que vão usar em cada obra, até o consumidor final, exigindo sempre a máxima segurança no imóvel que vai ocupar, ao invés de priorizar o fator preço.

No caso do alojamento do Flamengo, o profissional identifica fortes indícios de não observância dessas regras, a julgar pela velocidade com que as chamas se propagaram e a quantidade de fumaça por elas gerada.

Ali também não faltaram irregularidades, na visão de Carlos Cotta, que presta consultoria neste campo e coordena a Divisão Técnica de Engenharia de Incêndio do Instituto de Engenharia de São Paulo.

A começar pelo fato de o alvará do local ter sido concedido para um estacionamento e não um contêiner, instalação que, por sinal, ele considera imprópria para alguém descansar e dormir.

Uma possível reviravolta no cenário que acabou permitindo distorções como essas, Cotta condiciona à mudança de enfoque em toda a legislação brasileira da área, uma vez que mais de 80% das vítimas de incêndio morrem por asfixia, e não propriamente em função do fogo, tornando assim os detectores de fumaça essenciais, no seu entender.

Cotta, do Instituto de Engenharia de São Paulo: ainda faltam cuidados no controle da movimentação de fumaça e na elaboração de autos de vistoria

“Mesmo você tendo controle dos materiais de acabamento, eles sempre vão emitir uma certa quantidade de fumaça e isso também pode matar”, justifica o especialista, lembrando que no CT do Flamengo o uso desse recurso permitiria aos meninos despertar e fugir com calma e segurança.

Mas todos os bombeiros do País, de acordo com o coronel da reserva, “têm uma deficiência tenebrosa com relação ao controle da movimentação de fumaça, cuja complexidade é bem maior em comparação ao emprego de dispositivos como spinklers e hidrantes, que trabalham apenas com água”, acrescenta.

O consultor espera, no entanto, ver esse quadro em franca mudança quando for publicada a norma brasileira que vem sendo desenvolvida há quase cinco anos, no âmbito da ABNT, pelo Comitê Brasileiro de Segurança Contra Incêndio (CB 24), sob sua coordenação, em conjunto com o CB 55, que trata sobre refrigeração e ar-condicionado, coordenado pelo engenheiro Oswaldo Bueno, da ABRAVA.

A exemplo dos seus colegas de segmento, ele defende que os treinamentos passem a ser prioritários, evitando com isso cenas como as vistas em imagens do acidente no Rio, onde, a certa altura, alguém perambula com um extintor nas mãos, numa etapa já avançada do incêndio e dando a nítida impressão de estar totalmente desorientado.

“Ali deveria haver uma equipe atenta, um sistema de hidrantes, mangueiras sendo esticadas pelas pessoas e um combate direto às chamas, além de um pé direito bem maior, diferentemente do que ocorre num contêiner, onde a fumaça tende a se concentrar em grande volume, prejudicando a visibilidade no momento da fuga”, raciocina Cotta, para quem o local não passava de um puxadinho, repleto de armadilhas.

Embora a repercussão de acontecimentos assim tenda a produzir mudanças positivas, o engenheiro se diz pessimista de uma forma geral em relação ao futuro, pois a elaboração dos Autos de Vistoria do Corpo de Bombeiros ainda carece de uma maior especialização e não garante a segurança dos prédios.

“Apenas de 3% a 4% das edificações nas quais eu estive no ano passado e que tinham AVCB mereciam de fato possuir esse documento, o que mostra haver hoje, infelizmente, um autêntico quadro de me engana que eu gosto”, arremata o profissional.

INSTALAÇÃO SEGURA

Salvo uma surpreendente reviravolta, a ser provocada pelo laudo final sobre o incêndio que vitimou fatalmente dez atletas e feriu outros três da base do futebol do Flamengo, tudo começou com um curto-circuito num condicionador de ar do tipo janela.

Baseado nesse pressuposto, o presidente da Associação Sul Brasileira de Refrigeração, Ar Condicionado, Aquecimento e Ventilação (ASBRAV), Eduardo Hugo Müller, divulgou uma nota oficial logo após o acidente, enumerando pontos básicos para uma instalação segura.

De acordo com o especialista, os procedimentos obrigatórios neste campo estão previstos na Lei nº 13.589/2018, que explicita a necessidade da constante manutenção dos aparelhos e da fiscalização nos prédios públicos e privados coletivos. Ela também estipula a criação de um Plano de Manutenção, Operação e Controle (PMOC), que auxilia na prevenção de acidentes.

Deve-se, portanto, levar em consideração a importância de:

– No momento da instalação, analisar fios, tensão e potência adequadas dos aparelhos e da rede elétrica de cada local, observando cuidados como a instalação de disjuntores individuais e nas capacidades devidas.

– Dependendo do modelo, as potências diferem e por isso é necessário alterar a medida da fiação.

– Assegurar-se de que esteja sendo feita manutenção periódica, pois isso representa a garantia de se identificarem com antecedência problemas nos aparelhos.

– Cada equipamento tem uma proteção interna para evitar curto-circuito, mas é necessário verificar se ela não está desgastada, precisando de ajustes.