As ondas de calor na Europa vieram para ficar

“Mas quando é que vai acabar?”, perguntava um usuário há dois meses no Reddit, uma plataforma de rede social ao estilo de fórum informal. O tópico “Onda de calor na Europa” tinha recebido mais de 800 comentários de utilizadores espalhados pelo mundo, muitos deles chocados com as temperaturas abrasadoras de junho e julho no continente. “Ainda que as temperaturas locais possam ter sido inferiores ou superiores às previsões, os nossos dados revelam que as temperaturas no sudoeste europeu na última semana de junho foram invulgarmente elevadas. Embora tenha sido uma situação excecional, é provável que assistamos futuramente a mais casos como este devido às alterações climáticas”, afirmou Jean-Noël Thépaut, diretor do Copernicus Climate Service (C3S). A comparação dos dados recentes do C3S com registos mais antigos revela que o mês de junho deste ano foi, em média, 3 °C mais quente do que a média de 1850 a 1900.

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A iniciativa World Weather Attribution declarou que estas temperaturas recorde ocorrem geralmente uma vez a cada 50 a 150 anos. No entanto, segundo a Agência Europeia do Ambiente, a Europa tem sofrido várias ondas de calor extremas todos os anos desde 2014, exceto em 2016, deixando as equipas de emergência no limite das suas capacidades e causando disrupções na infraestrutura, além de ter feito soar o alarme sobre se a Europa se conseguirá adaptar com a rapidez necessária às condições climáticas extremas.

Um enorme desafio para as zonas urbanas europeias

Com cerca de 76% da população da UE a viver em cidades e prevendo-se que esta percentagem atinja os 82% em meados do século, muito do esforço de adaptação terá de ocorrer nas zonas urbanas.

Nos últimos três meses, uma avalanche noticiosa revelou a forma como o calor extremo agravou os principais problemas da vida urbana na Europa, desde a habitação, passando pelos transportes públicos, serviços básicos e empresas, até à saúde dos mais vulneráveis. Repensar a infraestrutura e a forma como as cidades funcionam sob o calor pode preparar o caminho para a resiliência, à medida que muitas áreas urbanas do continente se preparam para o seu futuro mais quente.

Os transportes públicos são também vítimas do calor

Passava do meio-dia de 25 de julho quando o operador ferroviário francês SCNF publicou um tuíte afirmando que mais de metade dos comboios que ligavam a cidade de Metz ao Luxemburgo, um trajeto com bastante procura, avariou devido ao calor. No mesmo dia, a linha férrea parisiense RER A, que serve cerca de 50 000 pessoas por hora nos períodos de ponta, fez parar as suas composições, pois as temperaturas superiores a 40 °C ameaçavam os carris e os cabos aéreos. No Reino Unido, vários incidentes causados pelo calor levaram à alteração dos serviços da National Rail, enquanto o metropolitano de Londres sofria grandes perturbações durante a hora de ponta. Três dias mais tarde, na Suécia, duas linhas férreas ficaram deformadas pelo calor.

A marcha lenta nas cidades poderá passar a ser a norma em dias quentes. Centenas de reclamações inundaram as contas das redes sociais das empresas de transportes públicos enquanto as leis da física seguiam o seu curso. “À medida que aquecem, atingindo temperaturas cerca de 20 °C mais elevadas que a do ar, os carris dilatam e o seu comprimento aumenta, o que pode resultar em curvaturas, conhecidas por “deformação”, explicou o Dr. John Easton, especialista em ferrovias da Institution of Engineering and Technology. O ajuste às mais elevadas temperaturas do ar poderá “certamente aumentar o risco de fratura dos carris”, afirmou o Dr. Easton. “A única solução é abrandar a velocidade dos comboios.”

Pintar os carris de branco para refletir parte da luz tem também sido frequentemente usado como opção para reduzir a sua temperatura em 5 a 10 °C. No entanto, manter os passageiros frescos encabeça a lista de problemas que exigem soluções de mais longo prazo. A SNCF francesa está a testar novos sistemas de ar condicionado para carruagens e sistemas de climatização de baixas emissões. Por seu lado, o programa Four Lines Modernisation da Transport for London forneceu 192 novas composições com ar condicionado para os londrinos.

Ondas de calor que levam as centrais elétricas ao ponto de ruptura

Dadas as elevadas necessidades energéticas da indústria, das empresas e das residências, a economia e o estilo de vida das cidades podem ser adversamente afetados se a adaptação não for mais profunda. No dia 27 de junho, numa Milão a transpirar a mais de 40 °C, as necessidades energéticas da cidade atingiram um pico a 1635 MW. Vários apagões deixaram partes da capital financeira italiana sem energia elétrica, alguns deles durante mais de metade do dia, enquanto as necessidades disparavam para níveis 40% superiores aos do ano anterior.

No verão, Atenas duplica as suas necessidades de refrigeração, o que leva ao triplicar das cargas de pico de eletricidade. Entretanto, a Agência Europeia do Ambiente declarou que os picos de procura de eletricidade para refrigeração irão aumentar na Europa, tendo previsto os maiores aumentos para Itália, Espanha e França. Na Itália, por exemplo, a procura de refrigeração dos setores residencial e dos serviços poderá passar de 13% das necessidades energéticas primárias totais em 2010 para 70% em 2050.

No entanto, com 66% da energia para aquecimento e refrigeração proveniente de combustíveis fósseis, e um número estimado de 60,5 milhões de unidades de ar condicionado para recintos fechados em 2016, arrefecer poderá tornar a situação ainda mais quente.

Uma vez que o ar mais quente exige mais refrigeração, a produção de energia tem de acompanhar este aumento. Contudo, as temperaturas invulgarmente elevadas podem também tornar a produção energética mais lenta, especialmente no caso dos combustíveis fósseis e da energia nuclear. Na manhã do dia mais quente em França, a EDF reduziu a produção energética em seis reatores; já tinha encerrado outros dois no sul do país, onde as águas do rio Garonne estavam demasiado quentes para arrefecer os reatores.

Linhas de distribuição menos eficientes sob calor excessivo com o aumento das necessidades de ar condicionado

Espera-se também que os europeus pretendam permanecer mais frescos nas suas casas. Com o aumento das necessidades de refrigeração e da quantidade de energia que tem de percorrer os cabos a altas temperaturas, as linhas tendem a dilatar e a perder a tensão, o que pode levar a falhas na infraestrutura. Estudos nos EUA demonstram que, por cada grau de aquecimento no verão, as linhas elétricas perdem cerca de 1,5% da sua capacidade de transmissão, o que poderá suscitar um problema de segurança energética quando as necessidades de refrigeração atingirem máximos. No Reino Unido, as operadoras estão a utilizar cabos com maior tolerância ao calor, enquanto a Finlândia está a transferir os cabos para o subsolo.

Embora em 2018 a UE tenha sido responsável por 11% do consumo mundial de energia para refrigeração, o que inclui frigoríficos e refrigeração móvel como as unidades de ar condicionado portáteis e as ventoinhas, é provável que a energia usada para arrefecer edifícios em toda a Europa sofra um aumento de 72% até 2030, afirmam especialistas da Agência Internacional para as Energias Renováveis.

Unidades de ar condicionado mais eficientes, o aumento da capacidade de transmissão e transição para fontes de energia que não requerem água para arrefecimento, tais como os painéis fotovoltaicos solares, podem fazer uma diferença positiva. As alternativas como a refrigeração por absorção operada a calor e melhorias na concepção dos edifícios podem também reduzir as necessidades de refrigeração, afirmou a AEA.

Ilhas de calor urbanas mais quentes

Apenas duas noites entre 21 de junho e 22 de agosto não tiveram características tropicais em Nice este verão, registando temperaturas abaixo de 20 °C, de acordo com a Météo France. Tal constituiu um novo recorde urbano. A incapacidade das cidades de reduzirem a temperatura noturna é parte do efeito de “ilha de calor urbana”, uma vez que os edifícios e as superfícies isoladas aprisionam calor e voltam a irradiá-lo à noite para o ar da cidade, mais intensamente do que acontece em áreas rurais e verdes.

“Ajudar as pessoas mais expostas ao calor é fundamental”, afirma a equipa de especialistas do Barcelona Lab for Environmental Justice and Sustainability (BCNUEJ). “Os residentes de baixos rendimentos tendem a viver em habitações mal refrigeradas e pouco isoladas. Além disso, dispõem de menos meios para renovar as suas casas e vivem em bairros com menos árvores ou grandes espaços verdes.”

“Temos de plantar árvores onde o efeito de ilha de calor é maior, onde as pessoas estão a sofrer, especialmente nas áreas cinzentas da periferia”, afirmou Piero Pelizzaro, Diretor de Resiliência da cidade de Milão. “A classe média é capaz de gerir as ondas de calor: adquire ar condicionado. Os pobres sofrem mais. A desigualdade está a aumentar, estando por isso a crescer o que foi designado por ‘gentrificação climática’. Em Milão, está cada vez pior.” O gabinete do presidente da câmara da cidade tem por objetivo plantar três milhões de árvores até 2030 na área metropolitana da cidade através de um programa de floresta urbana, explicou Pelizzaro. No primeiro ano, foram plantadas quase 80 000 árvores.

 Calor e saúde: um problema urbano europeu

O efeito amplificador térmico das cidades e as mais frequentes ondas de calor irão expor a população urbana da UE a temperaturas excessivas durante os meses de verão, o que constitui já uma emergência sanitária, segundo relatos recentes. As 70 000 mortes causadas pela onda de calor na Europa em agosto de 2003 reforçaram a determinação de muitas autoridades locais do continente em acelerar os preparativos. O Plano de Adaptação de Paris recorre aos seus habitantes para cuidarem dos seus vizinhos e registarem quem é vulnerável ao calor e deve ser vigiado durante os dias com temperaturas máximas. Para retomar o passo nos seus espaços verdes e combater o efeito de ilha de calor urbana, a capital lançou também o projeto OASIS, destinado a renovar os pátios das escolas com a substituição do asfalto por materiais porosos e o aumento das áreas verdes e de arrefecimento. “O que torna o programa inovador é a sua governação, que reuniu diferentes departamentos da cidade (escolas, saúde, estradas, espaços verdes e água) em torno da conceção e implementação do projeto de forma integrada”, afirmou Lina Liakou, diretora executiva da 100 Resilient Cities Network.

As altas temperaturas nas áreas urbanas podem também aumentar a exposição ao ozono ao nível do solo, nocivo para os sistemas respiratórios e cardíacos dos seres humanos e causa de mortes prematuras. Este é produzido quando óxidos nitrosos e compostos voláteis emitidos pelas atividades humanas reagem sob luz solar intensa e altas temperaturas. Durante a onda de calor de julho último, algumas cidades europeias apresentaram níveis de ozono de cerca de 180 µg/m³, o limite máximo da UE. Em 2016, cerca de 98% da população urbana da UE estava ainda exposta a valores de ozono ao nível do solo superiores aos limites da OMS.

 

Fonte: Euro News – Portugal